Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Foto: Madame Bovary / Fonte: Google Imagens

Resenha Literária — Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Eu nunca gostei de fingir que estava satisfeita. Quando me disseram que a vida comum era tudo o que eu poderia aspirar, senti uma ferida no peito — e foi essa ferida que me aproximou de Emma Bovary. Talvez porque eu, como ela, sempre guardei dentro de mim uma fome inquieta por algo maior: mais paixão, mais beleza, mais perigo. Emma me ensinou — dolorosamente — que desejar demais pode ser tão destrutivo quanto não desejar nada.

Sinopse do livro Madame Bovary

Emma Bovary, nascida aos devaneios românticos, casa-se com Charles, um médico provinciano gentil porém sem brilho. A vida em Yonville — a rotina, as pequenas cerimônias do dia a dia, os livros açucarados que ela devora — transforma-se numa punição cotidiana. Em busca de emoção, Emma se envolve em relações extraconjugais, consome luxos que não pode pagar e mergulha numa espiral de alienação e dívida. Flaubert acompanha a lenta autodestruição de sua heroína até uma tragédia que parece, a cada página, inevitável.

Introdução à obra e contexto histórico

Publicada em 1857, Madame Bovary foi um marco do Realismo francês. A obra provocou escândalo: Flaubert foi levado a julgamento por “ofensa aos bons costumes”, acusado de imoralidade — e, no entanto, saiu absolvido. Seu projeto artístico era ambicioso: escrever “uma obra sobre nada” e, na prática, desvendar tudo — especialmente a anatomia do tédio e da insatisfação na emergente burguesia pós-napoleônica.

Sociedade e Cultura (Província francesa)

  • Ordem burguesa: o conforto e a respeitabilidade social substituem o risco e a aventura.
  • O papel feminino: a mulher é educada para o casamento e para o consumo simbólico; alternativas reais poucas ou nulas.
  • Leituras românticas: folhetins e novelas alimentam expectativas impossíveis — a principal causa do choque entre desejo e realidade.
  • Economia da aparência: ostentar é afirmação de posição; o consumo torna-se identidade.

Retrato controverso: adultério, consumismo e moralidade

Flaubert não moraliza com discursos retóricos. Ele mostra: Emma trai, compra, mente e paga pelas consequências. Essa franqueza ofendeu leitores do século XIX — e ainda provoca debates hoje. A obra é acusada de glamourizar ou censurar Emma, dependendo do olhar do leitor; Flaubert, fiel ao realismo, prefere deixar a ambiguidade no ar: vítima? culpada? ambas?

Análise Pessoal

Li Madame Bovary como quem espreita um segredo íntimo. Reconheci ali um desejo que já me atravessou: a ânsia de tornar a vida digna de ser contada. A escrita meticulosa de Flaubert transforma o cotidiano em acusação — o cheiro do leito, a conta na mesa, o vestido encomendado: tudo se torna prova da queda. Emma não é mera vilã; é a tragédia de alguém que confundiu literatura com existência.

“Ela queria morrer, e viver em Paris.” — síntese cruel do coração de Emma.

Temas e Mensagens

  1. O tédio como força destrutiva — não é detalhe: é motor de ruína.
  2. Expectativa x realidade — viver pela ficção é condenar-se à decepção.
  3. Opressores sociais — costumes e papéis limitam escolhas, principalmente as femininas.
  4. Consumo como identidade — comprar para ser, e não para ter.
  5. Ambivalência moral — Flaubert evita sentenças fáceis; ele instiga reflexão.

Estilo de escrita & construção de personagens

Flaubert é obsessivo pela palavra exata. Sua prosa é enxuta, lapidada — beleza fria que surgilha o leitor. Ele prefere a cena à lição; mostra em vez de pregar. Os personagens são, assim, retratos psicológicos: Emma, contraditória e intensa; Charles, simples e incapaz de corresponder; Rodolphe e Léon, espelhos de fugas distintas; a sociedade, personagem coletivo, legista e plateia.

Prós

  • Retrato psicológico profundo e atemporal.
  • Prosa técnica e elegante — obra de engenho estilístico.
  • Crítica social ainda pertinente.
  • Personagem central inesquecível e complexa.

Contras

  • Ritmo ponderado; pode cansar leitores que buscam ação rápida.
  • Distância narrativa: a frieza pode parecer aridez emocional.
  • Personagens masculinos menos desenvolvidos em comparação com Emma.

Possíveis inspirações de Flaubert

Flaubert observou a província com olhar clínico: casos cotidianos, folhetins e a nova economia do consumo deram matéria-prima. Seu objetivo estético — purgar sentimentalismo e alcançar a forma perfeita — moldou a obra; a “repulsa” contra o melodrama romântico aparece como reação direta ao romantismo vazio que ele via proliferar.

Obras semelhantes

  • Anna Kariênina, de Liev Tolstói — tragédia do desejo em choque com a sociedade.
  • O Primo Basílio, de Eça de Queirós — crítica social e adultério em cena.
  • Effi Briest, de Theodor Fontane — destino feminino em província moralista.
  • Contos de Maupassant — cortes cirúrgicos sobre falhas humanas.

Reflexão Final

Quando fechei o livro, ouvi o silêncio daquela província: não o silêncio do fim, mas o silêncio do que não foi vivido. Emma morreu de sonho; Flaubert escreveu a sua própria acusação e o espelho que nos obriga a encarar: até que ponto nossos sonhos nos salvam — ou nos consomem?

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Informações da obra no Brasil

Título: Madame Bovary (Madame Bovary: Mœurs de province)
Autor: Gustave Flaubert
Ano de publicação: 1857
Gênero: Realismo, Romance psicológico, Drama
Editora (edições em português): Companhia das Letras / Penguin Classics / Martin Claret
Traduções recomendadas: Mário Laranjeira, Fúlvia Moretto, Paulo Neves
Páginas: ~400–440 (dependendo da edição)
ISBN (exemplo): 9788571643756

🔗 Madame Bovary — Companhia das Letras

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